Quem é esse cara?

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Por Claudio C. D’Orazio - Incluindo-me em análise de uma vida mal dormida, Afonso disse que nós que havíamos sido quase artistas, sabíamos do que se tratava. Não concordei, exatamente, com aquilo, mas nada disse. Digo agora... Ao Afonso, tudo interessa. Música, dança, literatura, pintura, escultura, dramaturgia, o sexo das formigas, os vulcões, as tartarugas, todas as palavras, outras palavras, todos os povos, enfim, todas as coisas... Trata-se de um apaixonado, assim, poderia discorrer sobre qualquer coisa, com algum conhecimento. Ligar-me a ele, como quase artista, foi de uma gentileza enorme. Somente os que não dormem, motivados por tamanha paixão podem usufruir de definição tão complexa. Questiono-me mesmo assim o que vem a ser um artista e por conseguinte um quase-artista. Em minha análise modesta, o Afonso sempre foi um grande artista, não publicado, entretanto,agora sendo resolvido. Seus desenhos, seus poemas suas críticas artísticas influenciaram-me de uma forma marcante, decisiva, por onde vou o carrego comigo, vocês, doravante, o carregarão com certeza, sendo marcados por sua criatividade e multiplicidade, é o que pensa e deseja este aspirante a quase-artista.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Ella Fitzgerald and Louis Armstrong - Summertime

I Reminiscências de um adeus (continuação)


            Vitório já desconfiando qual seria a resposta quando perguntou ao pai quem o coronel não queria mais ver na cidade. Seu pai o olhou com ternura e profunda angustia, Arrume suas coisas, filho, amanhã você toma o vapor  para Salvador.
            Sem dizer uma só palavra saiu para o quintal, montou em Ventania, uma égua que ora puxava carroça, ora servia de montaria e foi em desabalada carreira a caminho da cachoeira. Passou sem perceber pelo bananal e pelas plantações de cacau, ao chegar encontrou Sofia que já o esperava com olhos vermelhos e inchados pelo choro da noite anterior, Ele não pode fazer isto. Vito abraçando-a com carinho, Ele pode sim, meu amor, seu pai pode tudo o que quiser, ele só não pode me impedir de amá-la. Onde quer que eu esteja te amarei para sempre.
Vito prometa-me que nunca irá me esquecer, que me amará para sempre. Sim, meu amor, eu sempre te amarei. Os dois ficaram ali abraçados em profundo silêncio, palavras não havia, não cabiam naquele momento.
            Sofia e Vitório cresceram junto, ninguém se preocupava com as diferenças na época, cada um sabia o seu lugar.
Toninho Malva, pai de Sofia era um temido coronel da região, político influente, fora eleito varias vezes prefeito de Jericozinho[1], e quando não o era, era quem ele quisesse que fosse. O coronel era dono de quase tudo que se podia ver ou tocar na cidade.
Seu Benê, pai de Vitório era um comerciante do lugar, dono de uma pequena porção de terra e de um armazém, herdada pelo bisavô quando alforriado já no fim da vida. Seu Bene, conservava com orgulho a propriedade e, assim como seus ancestrais, resistira bravamente o assédio da família Malva, sobra suas terras. Toninho Malva, quando tomou a frente  da família, decidira que as terras não mais interessavam, e por fim a família de Vito pode ter um pouco de paz ali no vilarejo. Por este motivo, Seu Bene acreditava ter uma divida de gratidão com o coronel.
Vito e Sofia cresciam e brincavam juntos pelos campos, nadavam nos riachos e cachoeiras. O tempo passava e ninguém se dava conta de que Sofia e Vitório já eram adolescentes, o sentimento que os envolvia, que não sabia exatamente qual era, crescia junto com eles.
Vito aos dezesseis anos era um belo exemplar da espécie, um negro alto e forte. Sofia, apesar do clima do Recôncavo Baiano, tinha a pele de uma palidez herdada de ancestrais europeus, cabelos negros com grandes cachos e um lindo par de olhos azuis como os de sua bisavó materna. Aos quatorze anos, já tinha um belo corpo de mulher, que não era muito comum para as meninas daquela idade, mas ninguém notava, pois Sofia era recatada, usava saias sempre abaixo do joelho e blusas de manga comportadas e com botões fechados até o pescoço. Muitos a tinham como a “santa do lugar”.
            O tempo passou sem que eles percebessem as transformações pelo qual passaram, o amor nasceu entre os eles puro e inocente, forte e impulsivo como os amores adolescentes. Eram ingênuos nada sabiam sobre o amor, viviam como duas crianças brincando pelas matas e cachoeiras e gostavam do sentimento que os envolviam quando, cansados de tanta brincadeira, dormiam abraçados as margem do rio.
Certa vez quando voltava de uma de suas fazendas, o coronel Malva viu uma cena que o intrigou. Vito e Sofia saindo da cachoeira molhados, ele com a camisa nas mãos, deixando a mostra seu belo físico e Sofia com suas “roupas de santa” coladas em seu corpo, revelando toda sua sensualidade. O coronel parou a charrete, na qual viajava dizendo: Sofia, minha filha vamos para casa, molhada assim você a de pegar um resfriado.
Toninho Malva agiu com toda calma, pois percebeu que ali imperava pura ingenuidade, mas pode notar também toda a paixão que os envolveu na troca de olhares na despedida.
            A cena foi o bastante para que o coronel decidisse que a cidade era pequena demais para Vitório e Sofia.
            A palavra de Toninho Malva era lei em Jericozinho, e o pai de Vitório bem sabia disso e apressou-se em mandar o filho para a Capital: Vitinho meu filho, escrevi uma carta à Tia Dita, entregue-a quando chegar em Salvador.
            Sua mãe ficou arrasada, Benê, o que podemos fazer, o que será de nosso menino naquela cidade grande? Não se preocupe, minha Rosa, tenho certeza que será melhor para ele. Maria Rosa chorou do momento que soube até a hora da partida do filho. Sua irmã também chorava, só que era um choro diferente, pois sabia que fora daquele lugar seu irmão teria a chance de ser alguém. Nunca teria mesma sorte do irmão, a ela restaria esperar que se casasse e tivesse filhos.
No dia seguinte, a tardinha, Maria Alice acompanhou o irmão até o porto, Me escreva meu irmão, me conte cada passo seu, fiarei torcendo por você. Seu Benê carregou as malas em profundo silêncio ao lado dos filhos. Olhando o filho subir as escadas da embarcação que o levaria a Salvador, sentiu que uma lágrima lhe brotava no canto dos olhos. Parentes e amigos vieram despedir-se no porto. Vitório não pensava em outra coisa se não o amor que deixava para trás, seus sonhos que ali ficavam, sua liberdade, sua vida...
No convés Vito chorava copiosamente, o que conseguira reter até aquele momento. Olhava e procurava sua amada no meio da multidão que assistiam sua partida.
Sofia não saiu do quarto para nada naquele dia, nem mesmo para comer. Quando soou o primeiro apito do barco, Sofia, de um pulo saltou da cama como uma felina em direção a janela do quarto e saiu correndo até o  cais que ficava a algumas quadras dali. Ouviu mais um apito e correu mais ainda. Quando soou o terceiro apito anunciando a partida, com as amarras do barco já soltas, Vito a viu circulando em meio à multidão que ia se abrindo ao vê-la passar. Sofia parecia flutuar tal era leveza do seu andar. Vitório chorava no convés e Sofia, no cais. Ela desesperadamente e soluçante a beira do cais nem se deu conta que usava uma fina camisola que deixava a mostra seu lindo corpo molhado por repentina chuva torrencial que começara a cair no fim de tarde daquele verão baiano.
Aquela cena ficaria gravada para sempre como uma pintura na mente de Vitório e Sofia.
Foi então que Vitório percebeu que o disco havia acabado, nem mesmo ouviu o restante das músicas, tomou já frio o último gole do seu chá, colocou a xícara na mesinha, subiu os degraus que davam para o mezanino[2], entrou na suíte para o descanso de mais um dia.



[1] Cidade fictícia situada no Recôncavo Baiano
[2] Andar intermediário pouco elevado entre dois pavimentos altos, esp. entre o térreo e o primeiro andar