Quem é esse cara?

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Por Claudio C. D’Orazio - Incluindo-me em análise de uma vida mal dormida, Afonso disse que nós que havíamos sido quase artistas, sabíamos do que se tratava. Não concordei, exatamente, com aquilo, mas nada disse. Digo agora... Ao Afonso, tudo interessa. Música, dança, literatura, pintura, escultura, dramaturgia, o sexo das formigas, os vulcões, as tartarugas, todas as palavras, outras palavras, todos os povos, enfim, todas as coisas... Trata-se de um apaixonado, assim, poderia discorrer sobre qualquer coisa, com algum conhecimento. Ligar-me a ele, como quase artista, foi de uma gentileza enorme. Somente os que não dormem, motivados por tamanha paixão podem usufruir de definição tão complexa. Questiono-me mesmo assim o que vem a ser um artista e por conseguinte um quase-artista. Em minha análise modesta, o Afonso sempre foi um grande artista, não publicado, entretanto,agora sendo resolvido. Seus desenhos, seus poemas suas críticas artísticas influenciaram-me de uma forma marcante, decisiva, por onde vou o carrego comigo, vocês, doravante, o carregarão com certeza, sendo marcados por sua criatividade e multiplicidade, é o que pensa e deseja este aspirante a quase-artista.

domingo, 26 de dezembro de 2010

III Todo fim é um recomeço (continuação)

Dona Maria Thereza, esposa de seu Manoel, era uma portuguesa alta, cabelos e olhos claros, seguindo os traços de sua descendência alemã. Ao conhecer Vitório, encantou-se por ele. O casal não tinha filhos, por isso logo de cara, Maria Thereza projetou em Vitório todo seu amor maternal a anos represado dentro de si. Foi amor a primeira vista. Dona Maria Thereza foi quem decidiu abrigar Vitório. Em principio foi num quartinho nos fundos da padaria, pouco tempo depois, Vito ocupava um pequeno aposento na residência do casal.
Com a transferência para o Rio de Janeiro, Vito não concluíra os estudos, mas esforçado como era, não perdeu o hábito da leitura. Todo tempo que lhe sobrava Vitório estava estudando, se atualizando. Percebendo isto dona Maria Thereza arrumou condições para que Vito voltasse a estudar, afinal faltava apenas um ano para terminar o colegial. Ao final de dois anos Vitório era tratado como filho pelo casal, ele continuava fazendo os pães, mas ajudava também na contabilidade das duas padarias, pois adquirira mais uma no final daquele ano.
Por incentivo e insistência de dona Maria Thereza, Vito decidiu prestar vestibular para fazer arquitetura. Na adolescência em Jericozinho, projetara a ampliação de sua casa e do armazém de seu pai.
Foi na faculdade que começou a namorar Maria Lúcia.

domingo, 19 de dezembro de 2010

III Todo fim é um recomeço (continuação)


Chegou na rodoviária do Rio as seis horas da manhã, como não descera em nenhuma parada, tinha fome. Deixou sua mala num guarda-volumes e saiu para conhecer o lugar e procurar um local que pudesse tomar café. Os lanches vendidos na rodoviária eram caros e àquela hora da manhã o aspecto não era agradável.
Andou alguns quarteirões e se perdeu, já não sabia mais onde estava, tudo era muito diferente de Jericozinho. Num primeiro momento ia entrando em desespero, mas deduziu que não tinha andado tanto assim, e a rodoviária não deveria estar muito longe. Decidiu procurar uma padaria e tomar um café. Dobrou uma esquina e, como que por encanto uma padaria se materializou do outro lado da rua. O dono estava colocando um cartaz na porta escrito “Precisa-se de auxiliar de padeiro”. Vito apressou-se em atravessar a rua para falar com o homem.
O armazém de Seu Benê vendia pão fresquinho e quem os assava era Vitório desde os treze anos de idade.
Apresentou-se ao dono da padaria dizendo que queria o emprego. Seu Manoel olhou o rapaz e disse num forte sotaque lusitano, Ora gajo, sabes mesmo assar pães, pois pagarei como auxiliar, mais preciso mesmo é de um padeiro? Sei, sim senhor. No armazém de meu pai, eu era quem preparava a massa e assava os pães que vendíamos. Aprendi o oficio ainda criança e desde então era encarregado de fazê-los. Pois prepara-me então uma fornada, se gostar o emprego é seu. Já tenho massa pronta é só cortar e assar. Senhor será que posso antes tomar um café e comer um pão, cheguei a pouco da Bahia e não comi nada desde a tarde de ontem?
Vitório até esqueceu que estava perdido, tomou seu café e foi logo preparar a fornada.
Algumas horas mais tarde os pães estavam sendo vendidos no balcão e o “portuga” recebendo elogios, pois os pães daquela manhã estavam no ponto certo. Ao receber os primeiros elogios Seu Manoel, disse a Vitório que continuasse a assar pois o emprego era dele.
Grande foi sua empolgação que nem se deu conta do que estava acontecendo. A tarde seu Manoel combinou o salário, que era pouco, mas dava para ele começar, Os negócios não andam bem, com o tempo, melhorando as coisas eu o promovo a padeiro e lhe dou um aumentinho,   rapaz!
Vito saiu da padaria sem saber para onde ir, escolheu voltar pela rua de onde viera pela manhã. Ao dobrar a esquina encontrou uma senhora e pergunto a ela como chegar à rodoviária.
No caminho de volta foi pensando que realmente tudo estava a seu favor. Mal chegara na cidade e já estava empregado. Só tinha um problema a resolver, a moradia. Vitório não conhecia nada ali, e não sabia nem por onde começar. Achou por bem passar a noite ali mesmo nos bancos da rodoviária, depois do trabalho tentaria resolver aquele problema. “Quem sabe seu Manoel não conhecia algum lugar que eu possa ficar...”, pensou ele antes de adormecer no banco fazendo sua mala de travesseiro.
Quando Vitório despertou já eram 4:30h, e o combinado era às 3:00h. Vito pegou sua mala e sai apressado seguindo a direção que tomara na manhã anterior, não sabia ao certo o caminho para padaria. Tropeçou em alguns bêbados caídos na calçada, desvencilhou-se das prostitutas e seus convites indecorosos. Já exausto de tanto andar, lá pelas seis da manhã encontrou a padaria. De longe viu o português com a placa nas mãos. Ao chegar explicou a ele o seu caso e como muitos fregueses já haviam cobrado o pão do dia anterior, seu Manoel achou que seria melhor relevar, Tu podes ficar, mas descontarei o atraso em teu ordenado. Agora vá para dentro e comece o seu oficio, a tarde veremos se damos jeito no seu caso.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Clair de Lune - Claude Debussy

III Todo fim é um recomeço


Enquanto o barco se afastava de Jericozinho, Vito ia pensando o que seria de sua vida. Leu a carta que seu pai escrevera a sua tia e  percebeu que o destino lhe dava a chance de escolher. Decidiu que não iria para casa de tia Dita, mudaria seu rumo, mudaria sua vida. Contou o dinheiro que trazia consigo e achou que já era um bom começo. Quando chegou a Salvador foi direto para rodoviária disposto a comprar passagem para primeira capital que lhe acenasse. Ficou parado diante de um guichê sem nada dizer, algumas pessoas que estavam na fila começaram a reclamar, foi quando o bilheteiro disse, E ai mocinho, já decidiu o que vai querer? Olhou para o bilheteiro e, por de trás dele viu o cartaz com o Cristo Redentor que lhe acenava em cima do corcovado e disse sem pensar, Rio de Janeiro, por favor. Pronto seu destino estava traçado.
Um tanto quanto assustado com a passagem para o Rio de Janeiro nas mãos, comia um sanduíche de mortadela sentado num canto da rodoviária. Não sabia por que ia indo, mas ia indo. Aquele momento era um marco da sua vida, era o recomeço.
Ao embarcar tocava no alto-falante da rodoviária uma musica clássica que sempre ao ouvi-la lembraria daquele dia, viria a saber no futuro se tratar de “Clair de Lune” de Debussy. Era noite e Vito seguia seu destino pela estrada sob o clarão do luar, lembrando-se da música que ouvira na rodoviária. Parecia que tudo conspirava a favor.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

II D e s e n c o n t r o s (continuação)


Antonio Malva Neto, o Netinho tinha joie de vivre, era um bon vivant, um playboy usufruía de todas as regalias que as posses da família lhe proporcionavam.
Sofia, com a morte do pai, assumira os negócios da família. Comandava tudo com delicadas mãos de ferro. Em pouco tempo expandira as exportações de cacau e pasta de banana que fazia muito sucesso nos Estados Unidos. A construtora ganhava quase todas as licitações, ainda que por influencia do nome Malva. Tocavam obras pelo Brasil afora. Recentemente fora convidada a participar do consorcio que esta reconstruindo o Iraque depois da guerra. No final do ano anterior abriu um escritório em Lisboa, pois conseguira entrar com suas bananas na União Européia.
“Sorte nos negócios, azar no amor”. Esta máxima lhe caíra muito bem, aquele era o terceiro casamento que acabava.
Sofia ficou alguns anos em Fortaleza, terminou seus estudos na cidade formou-se em História. Um ano após se formar estava casada com um assessor da Presidência da Republica.  O casamento durou heroicamente quatro anos. Nos corredores palacianos, todos diziam “eles não formam um casal, não foram feitos um para o outro”. O casamento se deu por arranjo do coronel Toninho Malva. Sofia vivia entre Fortaleza, Ilhéus e o Rio de Janeiro, onde era a Sede do Governo até o final do casamento. O coronel Malva decidira ficar mais perto dos negócios e se mudou para sua fazenda de cacau. Com a separação, Sofia decidira mudar-se para Ilhéus, pois assim poderia lecionar na cidade ou até mesmo em Itabuna e assim ficar mais perto do pai. Aos poucos Sofia foi se inteirando dos negócios da família e fazia varias viagens para o Rio e São Paulo. Numa destas viagens conheceu um diplomata que se apaixonou por ela e propôs-lhe casamento. Sofia casou-se pela segunda vez. Devido ao trabalho do marido viveram vários anos fora do país. Aquele foi, dos seus relacionamentos, o mais estável, durou cerca de dezesseis anos e rendeu-lhe um casal de gêmeos. E por fim, fora o Dr. Jairo, renomado cirurgião. Viveu com ele aproximadamente oito anos.
Sofia não passava despercebida onde quer que esteja. Logo fora notada e admirada ao entrar no saguão do Aeroporto Internacional Antonio Carlos Jobim. Sofia estava deslumbrante com uma saia branca rodada com grandes pois brancos, uma blusa preta com frente única, um echarpe cor de abóbora cobria-lhe os negros cachos de cabelo e grandes óculos escuros escondiam um  lindo par de olhos azuis. Um misto de anos 60 e 70, em uma das mãos carregava uma frasqueira de viagem Victor Hugo e na outra segurava a coleira de Shenna, uma linda cadela Pastor Maremmano que sempre a acompanhava.
Maria, sua secretaria particular se aproxima depois de certifica-se que tudo estava pronto para o embarque. Ao passar pela porta de vidro que separava o saguão da área de embarque, algo fez Shenna se ater do lado do saguão, retardando a caminhada de Sofia até o avião. Ao virar-se para puxar a coleira, Sofia notou pelo vidro um perfil familiar entrando no restaurante do outro lado do saguão. Ela viu um negro alto, vestindo um belo costume, pelo corte um Kenzo com certeza. Ficou paralisada observando o homem entrar no restaurante, sentiu seu coração bater mais forte e não teve duvida, era Vitório. Maria aproximou-se, Sofia o piloto nos espera. Ela tentou falar alguma coisa, mas não encontrou palavras. Você esta bem, posso ajudá-la? Sim, sim...Estou bem...Acho..., pensei ter visto um velho conhecido.
Sofia observava pela janela a beleza do Rio de Janeiro. A lagoa, o Cristo, os urubus... já vira aquela paisagem diversas vezes, mas naquele dia o céu parecia ser mais azul, e o Sol ter mais luz.

II D e s e n c o n t r o s (continuação)

 Ao voltar Toninho Malva tomou ciência de tudo que falavam pela cidade e decidiu que seria melhor que Sofia também se afastasse. Por sua influência, havia eleito um primo Governador do Ceará. Telefonou a ele dizendo que mandaria Sofia passar uns tempos em Fortaleza.
Por mais que essa não fosse a vontade da menina, obedeceu as ordens do pai. Arrumou suas coisas, não sem antes conseguir o endereço de Tia Dita. Ao chegar em Fortaleza a primeira coisa que faria era escrever para Vitório.
O piloto avisou que estavam em solo cearense, Sofia foi uma das primeiras a sair do avião. Ao descer os primeiros degraus, sentiu um vento frio, foi quando percebeu que estava nua diante da grande janela da suíte.
Entrou no banho e deixou que a forte ducha massageasse o seu corpo. Saiu do banho, fisicamente revigorada, mas com sentimento de vaga e doce tristeza que compraz e favorece o devaneio e a meditação...
Preparou para si uma xícara de café, foi até a varanda de sua cobertura de onde avistava toda a orla. Surpreendeu-se pensando em Vitorio, coisa que não acontecia desde o dia que se convencera que Vitorio a havia esquecido: Como ele pode me esquecer tão rápido, por que não respondeu nenhuma de minhas cartas, mesmo que fosse para dizer que estava enganado e não me amava...
Sofia terminou seu café e encaminhou-se para a suite para arrumar as malas. Apanhou no closet uma pequena frasqueira e colocou seus objetos de higiene pessoal. Neste instante, Maria entrou no dormitório um pouco assustada:
Bom dia, Sofia! Acho que dormi demais.
Não se preocupe, Maria, fui eu quem nem dormi, estou as claras a noite toda, faça-me um favor, arrume minhas malas, enquanto ponho uma roupa, e peça ao Souza que prepare o carro. Ligue para o aeroporto e confirme que usarei o avião. Arrume suas malas também, passaremos uns dias na Bahia. Preciso recarregar minhas energias, não há melhor lugar, senão em Ilhéus para isto. Ficarei uns dias em Jericozinho, tenho que exorcizar alguns fantasmas...
Maria ainda meio tonta com tanta informação, tanta novidade, indagou: O Doutor Jairo irá conosco, devo arrumar as malas dele também?
Não, Maria eu vou só. Ou melhor, arrume sim, o Jairo passará aqui mais tarde para apanhá-las, ele esta se mudando para um apart-hotel.
Nas duas horas seguintes, Sofia deu vários telefonemas, orientando sua secretária e seus assessores para os dias que se ausentaria do Rio de Janeiro. Ligou para seu irmão em Nova Iorque dizendo que estaria em Ilhéus e que gostaria de estar com ele na primeira oportunidade: Seu pedido é uma ordem, em duas semanas estarei no Brasil e irei direto me encontrar contigo.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

II D e s e n c o n t r o s

Quando os primeiros raios de sol lambiam seu rosto, Sofia percebeu que já amanhecia, saiu do pequeno sofá da biblioteca no qual passara a noite perdida em suas lembranças, caminhou até cozinha e preparou para si um café. Enquanto a cafeteira efetuava sua operação matinal, foi para suíte tomar um banho. Ainda estava sob o torpor da decisão que tomara na noite passada. O fim de um casamento sempre é carregado de dor, mesmo quando não há outra saída.
A conversa com Jairo foi difícil, ela sabia o quanto ele a amava. A relação dos dois, sempre fora cercada de muito carinho, respeito e cumplicidade, mas Sofia, ainda assim não se completava, não conseguia devolver na mesma proporção o amor e carinho que ele lhe proporcionava. Decidiu então deixá-lo antes que sentimentos como, a mágoa, o rancor, o ressentimento e até mesmo o ódio começasse a fazer parte daquela relação que duravam três anos.
Lentamente despiu seu corpo branco como a neve, sentiu as lágrimas que misturadas a chuva, banhavam seu rosto ao ouvir o apito do barco que se afastava. O sol já ia baixando, a noite chegava de mansinho quando Maria Alice, irmã de Vito, apareceu com um manto nas mãos e cobriu-lhe a nudez, Vamos até minha casa, tenho roupas secas que lhe servirá.
A dor era maior do que imaginara, Oh Alice não sabia que o amor doía tanto assim. Sofia caminhava ao lado de Licinha sob os olhares atônitos da cidade que cochichavam coisas ao pé do ouvido. Sofia sentia que lhe tiravam um pedaço, que nunca mais seria completa. Vito sempre dizia Somos dois ao mesmo tempo em que somos um ser. A dor maior que sentia não era a da separação, mas sentia que aquela teria sido a última vez.  Somos dois ao mesmo tempo em que somos um ser só, dizia ela dentro de si.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Ella Fitzgerald and Louis Armstrong - Summertime

I Reminiscências de um adeus (continuação)


            Vitório já desconfiando qual seria a resposta quando perguntou ao pai quem o coronel não queria mais ver na cidade. Seu pai o olhou com ternura e profunda angustia, Arrume suas coisas, filho, amanhã você toma o vapor  para Salvador.
            Sem dizer uma só palavra saiu para o quintal, montou em Ventania, uma égua que ora puxava carroça, ora servia de montaria e foi em desabalada carreira a caminho da cachoeira. Passou sem perceber pelo bananal e pelas plantações de cacau, ao chegar encontrou Sofia que já o esperava com olhos vermelhos e inchados pelo choro da noite anterior, Ele não pode fazer isto. Vito abraçando-a com carinho, Ele pode sim, meu amor, seu pai pode tudo o que quiser, ele só não pode me impedir de amá-la. Onde quer que eu esteja te amarei para sempre.
Vito prometa-me que nunca irá me esquecer, que me amará para sempre. Sim, meu amor, eu sempre te amarei. Os dois ficaram ali abraçados em profundo silêncio, palavras não havia, não cabiam naquele momento.
            Sofia e Vitório cresceram junto, ninguém se preocupava com as diferenças na época, cada um sabia o seu lugar.
Toninho Malva, pai de Sofia era um temido coronel da região, político influente, fora eleito varias vezes prefeito de Jericozinho[1], e quando não o era, era quem ele quisesse que fosse. O coronel era dono de quase tudo que se podia ver ou tocar na cidade.
Seu Benê, pai de Vitório era um comerciante do lugar, dono de uma pequena porção de terra e de um armazém, herdada pelo bisavô quando alforriado já no fim da vida. Seu Bene, conservava com orgulho a propriedade e, assim como seus ancestrais, resistira bravamente o assédio da família Malva, sobra suas terras. Toninho Malva, quando tomou a frente  da família, decidira que as terras não mais interessavam, e por fim a família de Vito pode ter um pouco de paz ali no vilarejo. Por este motivo, Seu Bene acreditava ter uma divida de gratidão com o coronel.
Vito e Sofia cresciam e brincavam juntos pelos campos, nadavam nos riachos e cachoeiras. O tempo passava e ninguém se dava conta de que Sofia e Vitório já eram adolescentes, o sentimento que os envolvia, que não sabia exatamente qual era, crescia junto com eles.
Vito aos dezesseis anos era um belo exemplar da espécie, um negro alto e forte. Sofia, apesar do clima do Recôncavo Baiano, tinha a pele de uma palidez herdada de ancestrais europeus, cabelos negros com grandes cachos e um lindo par de olhos azuis como os de sua bisavó materna. Aos quatorze anos, já tinha um belo corpo de mulher, que não era muito comum para as meninas daquela idade, mas ninguém notava, pois Sofia era recatada, usava saias sempre abaixo do joelho e blusas de manga comportadas e com botões fechados até o pescoço. Muitos a tinham como a “santa do lugar”.
            O tempo passou sem que eles percebessem as transformações pelo qual passaram, o amor nasceu entre os eles puro e inocente, forte e impulsivo como os amores adolescentes. Eram ingênuos nada sabiam sobre o amor, viviam como duas crianças brincando pelas matas e cachoeiras e gostavam do sentimento que os envolviam quando, cansados de tanta brincadeira, dormiam abraçados as margem do rio.
Certa vez quando voltava de uma de suas fazendas, o coronel Malva viu uma cena que o intrigou. Vito e Sofia saindo da cachoeira molhados, ele com a camisa nas mãos, deixando a mostra seu belo físico e Sofia com suas “roupas de santa” coladas em seu corpo, revelando toda sua sensualidade. O coronel parou a charrete, na qual viajava dizendo: Sofia, minha filha vamos para casa, molhada assim você a de pegar um resfriado.
Toninho Malva agiu com toda calma, pois percebeu que ali imperava pura ingenuidade, mas pode notar também toda a paixão que os envolveu na troca de olhares na despedida.
            A cena foi o bastante para que o coronel decidisse que a cidade era pequena demais para Vitório e Sofia.
            A palavra de Toninho Malva era lei em Jericozinho, e o pai de Vitório bem sabia disso e apressou-se em mandar o filho para a Capital: Vitinho meu filho, escrevi uma carta à Tia Dita, entregue-a quando chegar em Salvador.
            Sua mãe ficou arrasada, Benê, o que podemos fazer, o que será de nosso menino naquela cidade grande? Não se preocupe, minha Rosa, tenho certeza que será melhor para ele. Maria Rosa chorou do momento que soube até a hora da partida do filho. Sua irmã também chorava, só que era um choro diferente, pois sabia que fora daquele lugar seu irmão teria a chance de ser alguém. Nunca teria mesma sorte do irmão, a ela restaria esperar que se casasse e tivesse filhos.
No dia seguinte, a tardinha, Maria Alice acompanhou o irmão até o porto, Me escreva meu irmão, me conte cada passo seu, fiarei torcendo por você. Seu Benê carregou as malas em profundo silêncio ao lado dos filhos. Olhando o filho subir as escadas da embarcação que o levaria a Salvador, sentiu que uma lágrima lhe brotava no canto dos olhos. Parentes e amigos vieram despedir-se no porto. Vitório não pensava em outra coisa se não o amor que deixava para trás, seus sonhos que ali ficavam, sua liberdade, sua vida...
No convés Vito chorava copiosamente, o que conseguira reter até aquele momento. Olhava e procurava sua amada no meio da multidão que assistiam sua partida.
Sofia não saiu do quarto para nada naquele dia, nem mesmo para comer. Quando soou o primeiro apito do barco, Sofia, de um pulo saltou da cama como uma felina em direção a janela do quarto e saiu correndo até o  cais que ficava a algumas quadras dali. Ouviu mais um apito e correu mais ainda. Quando soou o terceiro apito anunciando a partida, com as amarras do barco já soltas, Vito a viu circulando em meio à multidão que ia se abrindo ao vê-la passar. Sofia parecia flutuar tal era leveza do seu andar. Vitório chorava no convés e Sofia, no cais. Ela desesperadamente e soluçante a beira do cais nem se deu conta que usava uma fina camisola que deixava a mostra seu lindo corpo molhado por repentina chuva torrencial que começara a cair no fim de tarde daquele verão baiano.
Aquela cena ficaria gravada para sempre como uma pintura na mente de Vitório e Sofia.
Foi então que Vitório percebeu que o disco havia acabado, nem mesmo ouviu o restante das músicas, tomou já frio o último gole do seu chá, colocou a xícara na mesinha, subiu os degraus que davam para o mezanino[2], entrou na suíte para o descanso de mais um dia.



[1] Cidade fictícia situada no Recôncavo Baiano
[2] Andar intermediário pouco elevado entre dois pavimentos altos, esp. entre o térreo e o primeiro andar